sexta-feira, 10 de junho de 2011

Biblioteca: Juliana Borges

Tempos de Modernidade
Juliana Borges

O avô, agora, não queria mais sair do quarto, interessado em aprender as novidades do computador... E ele estava se deliciando com sua empolgação... Desde a morte da avó, há quase dois anos, não o via tão animado. O avô mudou-se pra sua casa há um ano e meio, pra cuidarem dele melhor... Afinal, apesar de lúcido e independente, estava lá pelos 79, e tinham medo da solidão invadir seu coração e ele começar a fazer mala pra sair do mundo dos vivos, depois que a avó se fora.

No início, foi um tanto esquisito... O avô reclamava de tudo, da falta da Dona Rosa, falta da casa, da ausência dos vizinhos que eram amigos, das coisas que perdera e que ali não acharia mais... Mas eles tinham muita paciência e vontade de acolher esse avô, que sempre foi muito querido por todos, amoroso, não tinham como não corresponder ao afeto dele com a família. Por isso, a decisão de levá-lo pra lá havia até sido comemorada... e muito planejada, pra fazer as faltas irem diminuindo, até que um dia as reclamações começaram a não existir mais. Ele mesmo foi se incumbindo de inventar umas alegrias novas pro avô... Mostrava-lhe DVD, músicas novas, livros, contava dos seus namoros, pedia conselho pra confusão inventada, só pro avô se lembrar de como conquistou Dona Rosa, na noite de chuva em que ela ficou encharcada no ponto do ônibus e ele lhe entregou seu casaco marrom pra aquecê-la e, dias depois, seu coração, pra tê-la ao seu lado por exatamente 54 anos, 3 meses e 2 dias... Ele achava graça quando o avô mostrava saber, de cor, os anos da vida dos dois... “Sua avó nunca mais largou meu casaco marrom... e quando a gente, por algum motivo, se estranhava, ela esperava um pouco e logo colocava nossa música na vitrola, pra cantar bem alto, com Evinha... “alô coração... Vou dar a mão à alegria, e sair...”, que ela sabia que eu me derretia e que a gente não ia passar mais de um dia emburrado um com outro... hoje não é mais assim. Fico vendo vocês, jovens, levam a briga adiante e por qualquer motivo já pensam em não se ver mais... como é que podem chamar de amor uns encontros tão rápidos? Não entendo. Você não vê sua irmã? Jogou fora as flores que o namorado mandou como desculpas, e disse que não vai vê-lo nunca mais!”... “Mas, Vô, ele aprontou com ela!” “Mas amor é assim mesmo... muitas vezes o coração apronta e desapronta pelo desassossego de se apaixonar... até que ele aceite dar um pedaço pro outro, não é fácil mesmo não... mas vocês não têm paciência de esperar...” E assim passava horas ouvindo o avô filosofar sobre o amor, que era quando ele ficava mais animado e voltava aos velhos tempos que o “casaco marrom” havia lhe apresentado na juventude.


Foi então que teve idéia de “informatizar” Seu Theo... Compraram um computador, levaram pro seu quarto, instalaram tudo direitinho, com velocidade pra nenhuma impaciência atrapalhar o jeito mais devagar de aprender e fazer com que ele desistisse das aulas. Primeiro, Seu Theo fez ares de recusa... “Ah, nem! Não vou perder meu tempo com essa modernidade, não...” “Que isso, Vô! Não tô te conhecendo, não. Cadê aquela história que você me contava quando eu não queria aprender matemática? Aquela, de quando você começou a aprender o ofício de alfaiate e tinha medo de não saber a precisão dos cortes nos tecidos? Então... bora lá, que teclar e navegar é muito mais fácil que fazer terno pra entrar em Igreja em dia de casamento...” Com esse argumento, derrubou a cara de empacado que o avô tinha feito pra não aprender, e daí já começaram as aulas – que navegar não era exatamente ir pro mar, que ondas tinham outro significado – e cada dia passou a ter ares de descoberta dos novos territórios que Seu Theo ia conquistando.

“Uma maravilha!” sua mãe dizia a todo o momento. “Desde que sua avó se foi, é a primeira vez que vejo seu avô feliz... tô até estranhando! Parece que se esqueceu dela.” Essa foi a idéia mesmo que todos foram fazendo... E ele foi aprendendo cada vez mais rápido... não parava de perguntar, de pesquisar, era um tal de entrar no Google, de procurar amigos antigos do tempo de alfaiate, de fazer passeio virtual na Praça Sete, que parecia que ele nem pensava mais em Dona Rosa.

Vai que chega um dia, ele muito sério, pede, com ares solenes: “Vem cá, me ajuda a fazer meu perfil nesse clube novo. Tenho que fazer alguma proposta pra ser aceito? Ou não se usa mais isso?” O neto segurou o riso, pelo respeito que tinha com as dúvidas de uma geração dos tempos em que pertencer a algum grupo era compromisso avaliado... “Que clube é esse que você quer entrar, Vô?” “Esse aqui, um tal de Facebook... meu vizinho do Santa Branca me chamou pelo e-mail, mas eu não sei como se faz, me ajuda aqui...” “É, a modernidade chega inteira mesmo, não vem pela metade”, pensou o neto, e lá se foi, mais uma vez, mostrar os passos pro avô. Explicou, fez, refez, procuraram foto, “essa, não, aquela de vinte anos atrás, do meu aniversário de 60, não, vou deixar minha cara de viúvo mesmo”. Enfim, acharam uma, elegante, das bodas de ouro, “pra registrar meu dia de noivo realizado”, o avô falou.

Depois desse dia, o avô virou outro. Cheio de compromissos, arrumou um taxista de confiança, filho de um velho amigo que encontrou pelo Facebook, e duas vezes por semana ele o levava ao centro da cidade, onde se reuniam os “Dançarinos de Gravata”, que ele descobriu pela internet, e por lá ficava até quase uma hora da madrugada. A família, preocupada, ao perceber que as mudanças só vieram pra melhor, foram deixando. Davam umas espiadas, umas incertas, o neto aparecia pra “pegar carona no seu taxi, que tô sem dinheiro hoje pra voltar pra casa”... e assim foram se inteirando do mundo do avô, que virou rapaz de novo em dia de festa, naquelas noites entre amigos novos e antigos, recém descobertos.

Lá pelos dias de junho, o neto, passeando pelo Face, entra no perfil do avô e quase cai pra trás... “Em um relacionamento sério com Clarice”... “Não acredito! O Vô ... de namorada!?”...foi ter com ele em seu quarto, meio sem graça de perguntar, meio assim, tentando ser discreto, “Vô, fui te deixar um recado lá no Face...” “Ah, você leu a novidade?” ... Silêncio... “Ih, já vi que leu! Pois é, cansei de esperar sua avó me adicionar aqui...” “Como é que é, Vô?”... “Uai, pra que você acha que eu quis entender desse clube virtual? Achei que assim eu podia marcar uns encontros com sua avó... queria te fazer surpresa, por isso não disse nada... no início, vasculhei tudo atrás dela... espalhei recados entre suas amigas, as que encontrei aqui, nos lugares que ela gostava de passear, tudo... Rosa, Theo te espera no Facebook todas as noites... depois, fiquei esperando horas, dias, meses... até que comecei a desconfiar que esse desejo ela não ia realizar pra mim...” “Vô, mas Facebook não adiciona quem já morreu!”... “Sabe-se lá? Vocês inventam tanta novidade, porque não ia ter mais essa? Tive esperança, uai... e esperança torna os dias mais animados... e esperando fiquei... até que entrou Clarice na história. Fez fisioterapia na mesma época que sua avó... a gente conversava, às vezes, quando as sessões acabavam... ela me contou que ficou viúva 11 meses depois de mim. No início, fiquei meio acanhado de ficar batendo papo nessa tal de janela... achei um tanto demais pra minha idade... mas, depois, combinamos de nos ver... aí, a Clarice me convenceu que sua avó não ia mesmo aparecer mais, nem aqui, nem na China, nem em lugar nenhum... só nos meus sonhos e no meu coração... e me garantiu que nunca ia ter ciúme, que eu podia até falar dela sempre que quisesse que ela iria respeitar... foi tanto convencimento e tão boa companhia, que fui me rendendo... depois, veio com essa história de relacionamento sério no Facebook – “afinal, mês de junho é o mês do amor. Por que a gente não pode viver o nosso, que tá começando, e contar pra quem gosta da gente?”– ela me disse. Pensei bem, pensei muito, e olha, meu neto, se é pra ser moderno mesmo, então vou ser, que afinal de contas, não vou passar mais um Dia dos Namorados sozinho! E no domingo, se você quiser conhecer a Clarice, passa lá, nos “Dançarinos”... porque eu, em memória da sua avó, que me fez muito feliz, já me decidi ... tô voltando aos velhos tempos de mim. Ah, e depois, quando eu tiver um tempinho, te chamo pra você me ensinar como a gente faz com esse sinal aqui do Face, porque eu quero curtir meu novo status ... lá vou eu, com meu casaco marrom, ser feliz com a modernidade!”

(Pra Theodomiro e Rosa)

É sempre bom ver a Marquesa Juliana Borges aqui no Castelo. Seu talento nato é natureza de seu trabalho, discuplina e carinho para com a Literatura e assim sendo, espaço na nossa Biblioteca ela sempre terá. Mais do seu trabalho no http://primaletra.blogspot.com.

João Lenjob
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TEXTO CEDIDO E AUTORIZADO POR JULIANA BORGES

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