quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Biblioteca: Pedro Paulo Cava

A Barsa Careca.

Foi assim, de repente, durante o sono, que Marcelo Castilho Avellar nos deixou ontem.
Amigo de incontáveis horas e dezenas de lutas desde o início dos anos 80, quando foi nosso aluno na Oficina de Teatro.

Sabia que não seria ator porque era péssimo em cena. Mas dos cursos de Crítica Teatral ministrados por Yan Michalsky, Edélcio Mostaço, Timochenco Wehbi, dos cursos de Direção com Fernando Peixoto e do Curso de Cinema com Ricardo Gomes Leite, extraiu a base do seu trabalho futuro. Era um apaixonado pelas artes: teatro, dança, cinema, música e um sofrível tocador de um violino que raras vezes vimos.

Das salas da Oficina pulou para as páginas do Estado de Minas junto com Clara Arreguy, a convite de Mauro Werkema. E mais que crítico, sua capacidade de discorrer sobre qualquer tema, transformou-o numa das melhores escritas do jornalismo mineiro.

Tornou-se amigo inseparável, companheiro de lutas inglórias como a defesa do Cine Metrópole, causa perdida porque já era certo que seria entregue a um banco como promessa de campanha de Tancredo Neves. Depois, quando a polícia quis impedir a exibição do filme “Je vous salue Marie”, organizamos juntos uma noite lotada no DCE da Federal (hoje cine Belas Artes), abortada pela ação policial que chegou de surpresa em meio ao filme.

Mestre da erudição, ganhou de Andréia Garavello o carinhoso apelido de “Barsa Careca”. “Perguntem ao Marcelo que ele sabe”, dizia ela, “tem uma enciclopédia dentro da cabeça”.

Quando as discussões ficavam muito acaloradas ele vinha com seu bordão de desarmar espíritos em pé de guerra: “vocês seres humanos são muito complicados” e emendava uma solução para qualquer crise que parecia óbvia porque ele era o único a não se envolver nas contendas com emoção. De fora observava e depois vinha com a fórmula certa para resolver impasses e confrontos.

Com ele ao lado, fiz vários espetáculos nos anos 80: “Lua de Cetim”, “Rasga Coração”, “Galileu Galilei”, “Morango com Chantily”, “Bella Ciao”, “Frank Quinto”. As vezes atuava como assistente de direção e em outras apenas com meu alterego, criticando, pontuando, inquietando.

Ao contrário do que pensavam, era um tímido e bem humorado cidadão. Parceiro de noitadas de buraco comandadas por Clayde Gosling nas madrugadas do “Cozinha de Minas” ou na casa de um ou de outro.varando a noite entre risadas e fumaça de cigarro. Fartava-se de rir com uma boa piada. Era um gozador nato e passou a vida se divertindo muito com os pobres seres humanos e suas preocupações menores.

Em 1999 levei-o comigo para a Puc com a missão de assumir a cadeira de História do Teatro da nova Oficina de Teatro que se criava ali dentro. Em sala de aula era um mestre que provocava os alunos com questões filosóficas que iam muito além dos temas propostos. Era amado e odiado pelos aprendizes de teatro que viam naquela figura estranha e aparentemente fechada e petulante, um provocador de reações inesperadas dentro de uma sala de aula. E ria muito depois de cada aula das peripécias e “grilos” que deixava zunindo na cabeça dos alunos. Transgressor por natureza, indignado por vocação, seu texto irretocável impresso nas páginas do Estado de Minas, quase sempre era intransigente e demolidor contra qualquer tipo de arbítrio, autoritarismo e preconceito em relação às artes, em especial ao teatro.

Era um confidente e ouvinte atento e pontual. Amigo de primeira hora nas aflições dos que com ele privavam de confiança e fraternidade. Há alguns meses atrás disse-me estar deprimido quando nos encontramos na porta do jornal. “Posso ajudar?”, perguntei. E ele disse que no dia seguinte estaria melhor.

Na estréia de “Morte e Vida Severina”, sentou-se solitário na última fila e dois dias depois publicou talvez uma de suas últimas críticas.

Foi-se a noite passada durante os sonhos, quando seu coração inquieto simplesmente parou de bater e travou seu HD, levando armazenadas consigo milhões de informações e abrindo um vazio na inteligência mineira que será difícil de ser preenchido.

Em algum lugar ele e Clayde já devem estar armando uma rodada de buraco na eternidade e em meio a fumaça dos cigarros inseparáveis e devem estar morrendo de rir de todos nós, “pobres seres humanos complicados”.

Adeus Marcelo, as artes agradecem pelo tempo que passou conosco.

Pedro Paulo Cava

TEXTO CEDIDO E AUTORIZADO POR PEDRO PAULO CAVA

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